Conheça o inseto que já rendeu seis prêmios Nobel e pode revolucionar a pesquisa biomédica brasileira
13/08/2025
(Foto: Reprodução) Uma Drosophila melanogaster: Cerca de 75% dos genes conhecidos por causarem doenças em humanos possuem um gene correspondente (homólogo) na drosófila. Graças a isso e à facilidade de manipulação de seu genoma com precisão e rapidez, essas moscas tornaram-se modelos inestimáveis para desvendar patologias complexas como Alzheimer, Parkinson, diversos tipos de câncer, diabetes, distúrbios cardíacos, e até infecções pelos vírus da Zika e SARS-CoV-2.
Sanjay Acharya/Wikimedia Commons
A ciência brasileira vive uma encruzilhada estratégica. Ao longo da última década, o setor enfrentou um cenário de forte contração orçamentária e desfinanciamento crônico, colocando em risco décadas de progresso e a capacidade do país de gerar conhecimento, tecnologia e soberania. Manter a produção científica qualificada em um ecossistema de poucos recursos financeiros não é apenas um desafio, mas uma questão de sobrevivência para a inovação nacional.
Diante desta realidade, a busca por modelos de pesquisa que otimizem cada real investido torna-se imperativo. É neste contexto que a adoção de modelos animais e plataformas de pesquisa mais rápidas, baratas e igualmente poderosas surge como uma solução vital.
Neste cenário de urgência, a pequena espécie de mosca Drosophila melanogaster, popularmente conhecida como drosófila ou mosca-das-frutas, emerge como uma protagonista inesperada.
Enquanto o público leigo a vê como um incômodo, a comunidade científica internacional a reverencia como um modelo biológico extraordinariamente poderoso, responsável por seis prêmios Nobel e avanços revolucionários.
No Brasil de hoje, promover seu uso não é apenas seguir uma tendência global, mas adotar uma ferramenta de resiliência científica, capaz de manter a chama da descoberta acesa mesmo com recursos limitados.
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Poder genético e relevância humana
O que faz de um inseto de poucos milímetros um modelo tão valioso para estudar a biologia humana? A resposta está em nosso passado evolutivo. Cerca de 75% dos genes conhecidos por causarem doenças em humanos possuem um gene correspondente (homólogo) na drosófila.
Isso significa que processos biológicos fundamentais — desenvolvimento, proliferação celular, envelhecimento e comunicação neural — são controlados por mecanismos genéticos e moleculares surpreendentemente semelhantes.
Graças a essa semelhança e à facilidade de manipulação de seu genoma com precisão e rapidez, essas moscas tornaram-se modelos inestimáveis para desvendar patologias complexas como Alzheimer, Parkinson, diversos tipos de câncer, diabetes, distúrbios cardíacos, e até infecções pelos vírus da Zika e SARS-CoV-2.
Com a drosófila, os cientistas podem realizar triagens genéticas, toxicológicas e farmacológicas, além de manipular o desenvolvimento e o metabolismo in vivo e de acompanhar efeitos multigeracionais utilizando-se de ferramentas moleculares tão poderosas quanto ou até melhores do que as utilizadas em sistemas mais caros. A drosófilas fornecem a possibilidade de fazermos biologia de ponta, em um organismo completo, aqui mesmo no nosso próprio país!
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A vantagem estratégica quantificada em reais
Estima-se que o custo da realização de experimentos utilizando essas moscas seja de apenas 10% do valor para realizar os mesmos experimentos com camundongos ou ratos. Parafraseando o Dr. Hugo Bellen, do Baylor’s College, “10 vezes mais biologia é obtida por dólar investido em drosófila do que em camundongo” — e com o mesmo potencial para descobertas de alto impacto, vale ressaltar.
Para contornar os entraves regulatórios e os altos custos da experimentação com mamíferos, muitos cientistas brasileiros recorrem a modelos de cultura de células, que possuem suas próprias limitações.
Em uma análise recente com dados de fornecedores brasileiros, comparamos os custos para estabelecer e manter um laboratório de drosófilas (corriqueiramente chamado de Flylab) e um de cultura de células por um ano no país. Os resultados são decisivos para o cenário nacional: a pesquisa com drosófila é quase 3 vezes mais barata que a manutenção de culturas de células de mamíferos.
Se considerarmos apenas os consumíveis não duráveis, os custos anuais com moscas são quase 7 vezes menores.
Esses números provam que a drosófila não é apenas uma alternativa aos roedores, mas uma plataforma economicamente superior até mesmo a modelos in vitro amplamente utilizados. É muito comum associar baixo custo a baixo impacto ou a qualidade inferior, mas no caso da drosófila, o custo reduzido é uma vantagem e não um defeito.
O paradoxo brasileiro e a urgência da adoção de modelos alternativos de pesquisa
Diante de evidências tão contundentes, o Brasil apresenta um cenário histórico paradoxal. Enquanto potências científicas otimizam seus recursos com a drosófila, nosso país subutiliza este modelo, insistindo desproporcionalmente em plataformas mais caras desde as fases iniciais da pesquisa.
Essa escolha, no atual cenário de austeridade, representa um desperdício de recursos escassos, um freio à inovação e uma perda de competitividade.
Portanto, um passo decisivo para reverter este quadro repousa sobre as agências de fomento brasileiras, como o CNPq, a CAPES e as Fundações de Amparo à Pesquisa (FAPs) estaduais. É imperativo que estas instituições assumam um papel protagonista na promoção estratégica da Drosophila.
A criação de editais específicos não seria apenas um incentivo, mas uma declaração de política científica. Tais chamadas iriam otimizar o uso de recursos públicos, apoiar uma nova geração de cientistas e acelerar a pesquisa nacional.
Investir no uso ativo da Drosophila como modelo animal é semear um ecossistema de inovação biomédica ágil, resiliente e competitivo, fortalecendo o alicerce científico essencial para transformar a realidade e a soberania do Brasil.
*Marcus F. Oliveira é professor titular do Instituto de Bioquímica Médica Leopoldo de Meis (IBqM), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
*Marcos T. Oliveira é professor associado do Departamento de Bioquímica e Imunologia da FMRP, Universidade de São Paulo (USP).
**Este texto foi publicado originalmente no site do The Conversation Brasil.